“Doctor Doctor what is wrong with me”
(Roger Waters – Amused To Death)
UMA SOCIEDADE DEMASIADAMENTE
ENTRETIDA
por Uncle Bob
Entre
o final dos anos oitenta e o início da década de noventa, o lendário baixista e
ex-líder do Pink Floyd amargava um ressentimento sem precedentes pelo fato de
seus ex-colegas de banda terem resolvido voltar à ativa mesmo após o furioso,
arrogante e genial músico ter avisado que a banda progressiva mais famosa e bem
sucedida do mundo tinha, de fato, terminado após o lançamento do álbum Final
Cut (1983) que, curiosamente, seria lançado como um projeto solo de Waters. Os
executivos da gravadora desaprovaram a ideia e mesmo tendo sido lançado como um
álbum do Pink Floyd, o resultado nas vendas e críticas foi muito aquém das
expectativas, situação que enfureceu ainda mais Waters. O baixista acabou
culpando seus ex-companheiros pelo fiasco, valendo registrar que o tecladista
Richard Wright já havia sido limado como membro da banda logo após o lançamento
do álbum The Wall (1979), permanecendo como musico contratado na respectiva
turnê. Durante a gravação de The Final Cut, Roger demitiu definitivamente o
tecladista, o qual acabou sendo substituído pelo saudoso maestro Michael Kamen,
responsável pelos arranjos orquestrais em The Wall e The Final Cut.
Por volta de 1985/86, os membros remanescentes do Floyd (Gilmour e Mason) deram
sinais que iriam gravar um novo álbum e Waters tentou, em vão, impedi-los de usar
o nome da banda. A situação acabou ficando difícil para o baixista junto aos
tribunais britânicos. Ao perceber uma derrota iminente, Waters viu-se obrigado
a jogar a toalha e costurar um acordo com David Gilmour (guitarra e vocal) e
Nick Mason (bateria), deixando seus ex-companheiros, novamente acompanhados por
Wright (naquele momento participando apenas como musico contratado), tocando o
barco sem o seu comando.
Waters
seguiu em frente e lançou o irregular Radio Kaos (1987), o qual acabou sendo
obscurecido pelo retorno triunfal do Pink Floyd com o novo e controverso “A
Momentary Lapse of Reason” (1987). Para a infelicidade de Roger, a novidade
tornou-se um sucesso absoluto de vendas, fomentado por uma gigantesca campanha
publicitária que resultou numa mega turnê lotando estádios pelo mundo afora,
enquanto o ex-líder do Floyd viu-se obrigado a cancelar shows por falta de público.
Ironicamente, o nome da banda parecia ser mais importante que o novo conteúdo
musical, assim como havia ocorrido no lançamento de The Final Cut.
Em
1990, logo após a queda do muro de Berlin, Waters patrocinou uma ousada
encenação de sua famosa opera rock ao lado de ícones do rock-pop como
Scorpions, Paul Carrack, Van Morrison, Bryan Adams, dentre outros.
Logo
em seguida, Waters lançou terceiro álbum de sua carreira solo, intitulado
Amused to Death (1992), diretamente influenciado pela obra Amusing Ourselves to Death: Public Discourse in the Age of Show
Business, lançada em 1985 pelo educador Neil Postman. O livro em questão
trata do impacto midiático sobre o comportamento humano, aliado a questões
relacionadas com o excesso de informações, baixa qualidade e credibilidade das
mesmas, dando enfoque no poder da TV entorpecer e alienar as pessoas, fazendo
um paralelo com a célebre obra de George Orwell (1984) e o Admirável Mundo Novo
(Aldoux Huxley). Após terminar a
leitura, Waters teve o vislumbre de um futuro sombrio aonde um visitante
alienígena chegaria ao nosso planeta defrontando-se com esqueletos sentados
diante dos aparelhos de TV. Após muitas análises, os antropólogos alienígenas
chegariam à inevitável conclusão que nossa espécie moribunda teria se divertido
até a morte.
“And when they found our shadows grouped round the tv sets
they ran down every lead, they repeated every test
they checked out all the data on their list and then the alien
anthropologist admitted they were still perplexed
but on eliminating every other reason for our sad demise
they logged the only explanation left
this species has amused itself to death”
Do
livro anteriormente referido surgiu o título do álbum, cuja capa original
mostrava um gorila contemplando um aparelho de TV exibindo a imagem de um olho
tomando toda a tela (o grande irmão que tudo vê). Coincidência ou não, se tem a
nítida impressão que havia outra mensagem subliminar naquela imagem. O
espectador estaria assistido o clipe de uma das musicas de maior sucesso do
primeiro álbum do Pink Floyd após a saída de Waters (On The Turning Away)?
É
importante levar em consideração que, naquele momento (1992), a internet
engatinhava. Nos anos noventa não havia
mídia capaz de competir com o poder de influência da TV sobre a sociedade.
Partindo de tal premissa, Waters criou uma obra onde explorou de forma
magistral o conceito das informações massificadas, destilando fel, ironia e
sátira principalmente sobre questões
como guerra, religião, alienação, consumismo, política e entretenimento. A verborragia de Waters emula uma
metralhadora giratória que não poupa americanos, judeus ou árabes. Ninguém
poderia imaginar a profunda transformação que ocorreria nos meios de
comunicação com o crescimento exponencial da internet nos últimos vinte anos.
Assim, a importância da obra de Waters ganhou contornos ainda mais relevantes,
situação que também contribuiu para o relançamento, no final de julho de 2015,
do álbum remasterizado por James Guthrie. Waters alegou que queria dar um maior
destaque a guitarra de Jeff Beck e melhorar a mixagem original que já era
primorosa, mas ele deve ter percebido que o momento atual se tornou propício
para retomar suas considerações sobre a potencialização do poder de
alienação/influência das mídias sobre a sociedade. As mensagens de Waters e
Neil Postman conseguem ser ainda mais impactantes no contexto atual com a força
da internet e das redes sociais, dando a impressão que, pelo rumo que as coisas
andam tomando, não parece ser muito difícil imaginar que a sombria previsão
narrada nas estrofes finais da música que fecha o álbum possa se tornar realidade num futuro não muito distante.
“…no tears to cry, no feelings left
the species has amused itself to death.”
O àlbum foi lançado em vários formatos
(cd, dvd e blu-ray), sendo os dois últimos com as opções de audio
estéreo e audio 5.1, dando uma nova dimensão à obra de Waters, ressaltando
nuances sonoras não percebidas no formato convencional.
Nunca
antes na história a humanidade se divertiu tanto.
Avaliação:***** (Excelente)